quarta-feira, 25 de setembro de 2013

O espelho e o tempo

      Esta não vai ser uma história de mais uma pessoa comum, aliás, ao menos não a princípio. Joãozinho, como era chamado pelos amigos, tinha 20 anos e não era dos garotos populares que preferem e gostam de aparecer. Sempre fora muito tímido e pensativo, de modo que muitas vezes fitava o olhar em algum ponto e mergulhava nos próprios pensamentos e ficava assim, até que alguém viesse a interpelar o fio de suas ideias.
      Era difícil saber o que se passava na mente daquele garoto, afinal ele não falava muito sobre seus pensamentos e ambições, muito menos sobre o que sentia. Na verdade sentia vergonha de si mesmo, sim, vergonha. Pois apesar de não estar no time dos garotos populares da faculdade não expurgava seu desejo em ser como um deles. Sonhava em em ter um corpo mais trabalhado, vestir roupas atraentes, ter uma conversa mais descolada. Mas não, ele sabia que não era apenas isso, ele não conseguiria ser desse modo, afinal ele jamais conseguiria ser tão perfeito quanto desejava. Sentia-se um bom aluno, tirava boas notas, era gentil com as pessoas, tentava ser agradável a todos, mas sentia-se incompleto, faltava-lhe algo... Faltava-lhe ainda mais que uma ou duas coisas, queria ser como seu "eu" de suas ideias, capaz de tudo, um "superhuman". Era nisso que dispensava tantos pensamentos. Imaginava como seria legal ser outra pessoa, e não quem era. Sentia-se invisível diante de seus semelhantes, algumas vezes até mesmo inferior. 
      De todas as ideias que tinha a que mais lhe agradava era de voltar no tempo, mas não com a memória de outrora, e sim com a de hoje. Ja imaginou que interessante seria se ele pudesse realizar esse desejo? Consertaria todos os erros que já havia cometido, cuidaria melhor de sua saúde, sem falar que seria uma criança privilegiada e conseguiria um histórico escolar ainda mais invejável, e o melhor, num tempo récorde! Quem não se agradaria em conviver com uma pessoa prodígio?  Quantos amigos não se aproximariam de sua pessoa? Pensava alto nestas coisas e assim desejava-as de todo coração. 
      Gostava de pensar nelas antes de dormir. Nessa hora parecia que os pensamentos se aproximavam da realidade e ele conseguia se sentir num sonho quase real. Os olhos pesados iam acompanhando os pensamentos que iam desaparecendo na escuridão da noite até pegar no sono. Foi isso que ele fez hoje após vestir seu pijama:  deitou-se e começou a divagar sobre sua existência. A janela de seu quarto mostrava um céu limpo e repleto de estrelas e é para elas que ele envia seus pensamentos. Para a imensidão do céu, tão misterioso como a vida. Tão longe quanto pareciam seus objetivos e metas. Pensava mais uma vez sobre voltar no tempo e ser criança outra vez e assim seus olhos foram fechando, fechando, fechan...

-- João! Acorda João! Tá na hora de ir pra escola, e você já está atrasado!
-- Mãe, ainda tá cedo pra ir pra faculdade, eu só tenho aula à tarde...
-- É o que menino? Tá sonhando ainda? Sua faculdade ainda vai ser daqui a doze anos! Agora vá tomar banho que se não puxo suas orelhas!

      De súbito Pedro pula da cama e, ainda desnorteado, cambaleia até o espelho do banheiro onde se defronta com a  mais incrível visão de si: muitos centímetros mais baixo e com um aspecto impressionantemente infantil, assim como nos velhos tempos. 

-- Mãe, que data é hoje? -- grita do banheiro.
-- Terça-feira, João. Dia 1 de setembro -- responde da cozinha.
--Sim, mas de que ano, mãe?
-- Tais ariado é? Estamos em 2001, meu filho!
     
 Não podia ser! De alguma forma havia retrocedido no tempo e agora era uma criança novamente. Tinha lembranças vagas sobre sua escola nessa época. Recordava-se dos corredores imensos onde brincava com seus amigos. Lembrava-se dos professores com quem aprendera tantas coisas novas. Estava ansioso para revisitar aquele ambiente tão esquecido em sua memória. 

-- Vem filho! Seu café tá pronto!
-- Já vou mãe! Nossa! Leite com Nescau e panquecas? Há quanto tempo não comia isso!

      Sua mãe estava achando o jeito de seu filho estranho naquela manhã... Não parecia ele. De alguma forma  notara que seu filho estava com um brilho diferente no olhar, como se fosse outra pessoa em seu corpo. Mas preferiu ignorar o fato e tentou afastar qualquer pensamento dessa natureza.

-- Que é isso Joãozinho, você comeu panquecas  com leite achocolatado ontem...
-- Ah, foi mesmo...! -- responde ao perceber o olhar já estranho de sua mãe.
     
      A caminho da escola pára em frente ao obelisco da praça central e esteve a olhar para ele alguns minutos: como ele parecia bem menor quando comparado ao de suas lembranças. Notara que acontecia o mesmo com sua casa, a qual também parecia bem menor que aquela de sua memória. Percebia tantas coisas diferentes que jamais notara quando criança, até mesmo com relação a pessoas. Em realidade esperava que as coisas e seus significados não mudassem ou, se mudassem, que não fizesse tanta importância. Entretanto se sentia muito inseguro quanto a isso.

      Ao entrar na escola é conduzido até sua sala de aula. Ainda se lembrava daquela aula inaugural, inclusive de alguns detalhes dela. O teorema tão desafiador na aula de matemática seria tão facilmente respondido, que lhe renderia o prêmio que seu professor prometera à turma.

-- Então, alunos, sejam bem-vindos! Gostaria de, antes de iniciar novos assuntos, lançar um desafio pra vocês: quem resolver este teorema vai ganhar de brinde um lanche no intervalo!
Neste momento nenhuma mão havia sido levantado, exceto uma:
-- Eu topo!
-- Vejamos só! Temos um candidato! Pode vir até a lousa.

      Em menos de 5 minutos Pedro encontra a resposta e, a olhares eufóricos e admirados de seus colegas, recebe os parabéns de seu professor. Tudo fora mágico. Mas algo o incomodava profundamente a todo instante. Mesmo que não soubesse de fato do que se tratava. Sua mente ainda parecia se preocupar em certa medida com as redes sociais, os e-mais que precisariam ser abertos, trabalhos a serem feitos. Mas não estava na faculdade, nem muito menos existia Facebook nesta época. Procurava, nas horas vagas, ler alguma coisa. Mas não eram livros para infanto-juvenis: Nietzsche, Platão, Aristóteles.
      Passados dias, semanas, estava ele deitado em sua cama, da mesma forma como fazia sempre, e percebera que começava a sentir saudade de seus amigos na faculdade. Apesar de poucos eram únicos e muito especiais para ele. Hoje eles devem ser tão crianças quanto ele foi um dia e nada saberiam sobre quem ele é ou será no futuro. Provavelmente nunca mais os veria... Esse pensamento doeu tanto que fez brotar lágrimas nos olhos e passou um calafrio por todo o corpo. 

-- Quero meus amigos de volta!! -- brada com voz de choro, escondendo os soluços no travesseiro da cama.
-- Que foi isso meu filho...? Ouvi seu grito da cozinha... Seus amigos tão te fazendo mal? Que eu vou lá na escola puxar a orelha de todos eles!
-- Não, não mãe, não é nada não...

Ambos se abraçam e um tempo depois tudo se acalma.

-- Tudo bem, meu filho agora vá dormir. Certo? Que amanhã vai ter aula logo cedo.
-- Tudo bem mãe.

Permaneceu pensativo no quarto escuro depois que sua mãe fechou a porta. Neste dia fez o que gostava de fazer no futuro, agora passado: imaginar. Mas agora não imaginava coisas no passado, olhava para seu futuro-passado. Sentia falta dele, de quem ele era. Se era popular ou não isso já não parecia importar  tanto ou mesmo se não possuía um belo corpo e um estilo descolado. Lembrava dos dias vindouros com um pesar tão grande, como a maldição de quem não conseguirá encontrar jamais o mesmo caminho que já trilhou uma vez na vida. Os pensamentos encontravam na insônia um bom abrigo na madrugada. Pedro já não se sentia mais o mesmo, talvez não soubesse mais quem é ao certo. Já muito tarde da madrugada o sono chega sorrateiro...

-- Olá, Pedro!
-- Anh? Quem está falando? Onde eu estou?
-- Meu nome é Iranigami, o Deus da imaginação. Este é meu reino.
-- Mas aqui não tem nada, me sinto como alguma coisa solta no Universo...
-- Bem, talvez você apenas não consiga ver. Isto não significa que as coisas não estejam aí... Por exemplo, dê um passo para frente.
-- Ai! Acho que quebrei alguma coisa...
-- Foi só um planeta distante, por sorte não morava ninguém por lá.
-- Desculpe... Eu não...
-- Tudo bem, é natural você não ver estas coisas, até porque você é apenas um humano. Mas bem, o trouxe aqui por um motivo: percebi que você não está contente com o presente que dei. Não era seu sonho voltar ao passado e poder mudar as coisas?
--Bem, sim, mas não saiu bem como o previsto... Me sinto tão desmotivado a prosseguir que se pudesse voltar no tempo jamais pediria para voltar no tempo outra vez, quer dizer, é...
-- É muito confuso o tempo, não? Quando mal acabamos de entrar já é hora de sair. Mas tudo seria mais fácil se as pessoas soubessem que na vida mais importante que o antes e o depois é o durante. O que você faz de seu presente é o que determinará as consequências futuras. Não acha? Sem falar que também jamais conseguiremos ser e fazer tudo ao mesmo tempo, o tudo é grande demais, tão grande que nem somos capazes de vê-lo em toda sua extensão. Se você imaginasse outro pedido, o que seu coração desejaria, de verdade?
-- Se eu pudesse só pediria para ser eu mesmo outra vez... Mesmo que com todos meus defeitos. Acho que já não importa tanto se não sou o melhor de todos, quero tentar ser o melhor de mim, o melhor que puder e ser feliz.
-- Acho um bom pedido... Que assim seja feito!

Uma luz muito forte invade o espaço escuro que envolvia o jovem. O mundo ao seu redor se transfigurava em tons de vermelho. Faíscas anis, verdes e multicolores apareciam e sumiam em sua visão. Pouco a pouco sentia a dimensão de seu corpo, mexia os pés na cama, esticava-se e lentamente acordava. O sol batia forte em sua face, já era manhã. Já era manhã! Correu para o banheiro e se olhou no espelho tudo aquilo tinha sido apenas um sonho.

-- Uffa!! -- suspira aliviado.

Se sentia diferente, queria viver mais. Prometera a si mesmo que nunca mais tentaria ser outra pessoa que não ele mesmo. No presente do indicativo.

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